O cheiro de perfume de alfazema exalou por todo o Largo do Pelourinho, neste domingo de Carnaval e anuncia que o maior afoxé da Bahia, os Filhos de Gandhy, prepara o seu desfile. Cerca de 6 mil homens repetem um ritual iniciado em 1949, quando um grupo de estivadores do porto de Salvador resolveram criar uma agremiação para participar do Carnaval.
Antes de tomar as ruas, o Afoxé Filhos de Gandhy faz um Padê para Exú, com oferendas ao orixá guardião das ruas e encruzilhadas, pedindo licença para fazer um desfile carnavalesco que prega sobretudo a paz.
“O Afoxé Filhos de Gandhy é a reafirmação da presença negra nesta cidade, fincada no trabalho, já que nasce dos estivadores, e na identidade afro-religiosa. Como disse Mestre Didi, o afoxé é o Candomblé na rua e o Gandhy congrega festa e religiosidade e apresenta de forma pública, lúdica e esteticamente bonito. É tudo muito lindo”, destaca Paulo de Jesus, o doutor em História e professor da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). Ele conta que desfila no afoxé desde 2007, com algumas ausências, mas sempre reconhecendo a importância do afoxé para a população negra, especialmente para a afirmação e valorização estética do homem negro em meio ao racismo.
“Minha família era muito pobre e eu não tinha dinheiro para comprar a fantasia. Quando eu tinha 15 anos conseguimos a fantasia de um amigo e todos os meninos da rua, uns oito pivetes conseguiram tirar uma foto vestido de Gandhy. Foi a realização para nós e um acontecimento para a comunidade, porque o Gandhy tem esse papel de elevar a nossa auto estima e valorizar a nossa beleza”, explica.
O responsável pelas imagens que ilustram a fantasia do afoxé este ano, artista visual Junior Pakapym, 34 anos, sabe bem o peso que a esta roupa tem, não só para os associados, mas para baianos e turistas que apreciam o desfile do “Tapete Branco da Paz”. “Depois que eu entreguei o desenho, eu tive insônia e não consegui dormir por três noites, ansioso para ver as imagens na fantasia”, conta o artista que pela primeira vez assumiu a missão de representar em arte o tema do afoxé Filhos de Gandhy em 2023: 'Caboclos de Penas e Encourados'.
“Como sou do candomblé de Angola, já tenho um diálogo muito próximo com esse universo das penas e dos caboclos, por isso criar foi muito tranqüilo. Além disso, o tema envolve as questões atuais do Brasil, a situação ambiental e a forma como o país trata os povos indígenas. Tudo isso foi inspiração para a arte”, detalha Pakapym.
Na fantasia, formada por uma espécie de mortalha e um turbante de estilo indiano, predominantemente branca, com detalhes azuis e amarelos, estão ilustradas folhas, lanças, flechas, animais como a cobra, relacionada com a cura, além de caboclos de índios de pena e de couro. “Tem também a bandeira do Brasil por conta de ralação dos caboclos com os símbolos nacionais, de outra forma, bem diferente do patriotismo de direita que vemos por aí”, ressalta Pakapym que em suas redes sociais, o artista mantém uma atitude muito crítica em relação às pessoas que vulgarizam aspectos da religião do candomblé.
Esse ano será a primeira experiência de Junior Pakapym desfilando no afoxé, que ele considera tratar a religiosidade negra de forma bem respeitosa. “O problema são alguns foliões do bloco que não sabem diferenciar o que é sagrado e o que é profano e misturam tudo”, aponta o artista, que este ano também criou ilustrações para a fantasia de blocos como Olodum, Samba Popular, Proibido Proibir e outros.
Depois do tradicional Padê para Exú, ritual de abertura dos caminhos realizado no Largo do Pelourinho, o afoxé Filhos de Gandhy desfila pelo Centro de Salvador, partindo da Rua Chile em direção ao Campo Grande contando com o apoio do Programa Ouro Negro 2023.
Na segunda, o afoxé desfila pelo circuito Dodô (Barra – Ondina) e na terça-feira, retorna ao Centro de Salvador, encerrando a participação no carnaval no circuito Osmar.